A Origem das Mil e uma Noites

Noites Árabes. Pintor: Hans Zatzka


   Em meados de 500 a. C. circulava um livro persa de contos fantásticos chamado Hazar Afsana (do persa: "mil fábulas"). Uma história-moldura, isto é, a história por onde os contos nos são apresentados, nos falava sobre uma mulher muito sábia, que tinha crescido lendo a rica biblioteca do castelo de seu pai. Ela tinha um grande conhecimento não só de contos fantásticos, mas também sobre a mente humana, sobre medicina e outras áreas. Essa mulher era Sharazad, que ficou conhecida no Brasil pela pronúncia aportuguesada de seu nome: Sherazade.
   Sherazade salva o reino ao curar um rei de sua loucura: ele passou a se casar todos os dias, matando suas esposas após as núpcias. Para curá-lo, ela se propôs a se casar com o rei. Que não a matava somente por desejar ouvir o final de suas histórias, cerca de 200, contadas ao longo de mil noites.
   Histórias sobre injustiças, heróis corajosos, crueldades de reis... deu a esse rei, finalmente, a noção de sua loucura.
   É uma história magnífica que, no final, acaba por salientar o poder transformador de histórias, mesmo as fictícias! Esse tipo de história é chamada de "paradigma" ou, matal, em árabe, que significa um saber contado em forma de história fictícia.
   Mas porque não deixamos que um especialista da própria época desse livro nos conte mais sobre o Hazar Afsana? Apresento a vocês Annadím Alwarraq. Um bibliotecário que viveu em meados de 900 a. C. Ele se propôs a compilar todos os livros da literatura árabe de sua época, em seu catálogo, chamado de Alfihrist.
  Na parte oito de seu catálogo, onde ele compila os chamados asmar (história para serem contadas somente à noite), Annadím deixa preservado o único relato completo, e prova de que esse livro existiu de fato! E não só isso! Em uma sinopse do livro, o bibliotecário nos revela partes do enredo do livro original! Vejam abaixo o relato de Annadím em seu livro Alfihrist:

  “Quem primeiro produziu fábulas, e as pôs em livros, e guardou [tais livros] em bibliotecas, e compôs uma parte disso na linguagem de animais, foram os persas; a seguir, aprofundaram-se nisso os reis asgânidas, terceira geração dos reis persas. Depois, semelhantes fábulas se difundiram e ampliaram na época dos reis sassânidas, e então os árabes as passaram para o seu idioma, e os eloquentes e disertos poliram-nas e ornamentaram-nas, elaborando, no mesmo sentido, fábulas equivalentes. O primeiro livro feito nesse sentido foi Hazar Afsan, que significa mil fábulas. O motivo disso foi que um de seus reis [dos persas], quando se casava com uma mulher e passava com ela uma noite, matava-a no dia seguinte; então, casou-se com uma jovem [jarya] filha de rei, chamada Sharazad, que tinha inteligência e discernimento; logo que ficou com ele, ela começou a tuharrifuhu [‘entretê-lo contando fábulas’]: quando a noite findava, ela interrompia a história, fato que levava o rei a preservá-la e a indagá-la na noite seguinte sobre a continuação da história, até que se completaram mil noites, e ele, nesse período, dormiu com a jovem, que então teve um filho dele, mostrou-lhe a criança e o inteirou de sua artimanha; assim, o rei passou a considerá-la inteligente, tomou-se de simpatia por ela e lhe preservou a vida. O rei tinha uma aia chamada Dinarzad, que a apoiava em sua artimanha. Diz-se que esse livro foi elaborado para Æumana, filha de Bahman, e também há notícias diferentes."

  Um relato incrível e detalhado dessa história antiquíssima! Não acham?
  Mas não pensem, com esse relato entusiasmado de Annadím Alwarraq, que eram histórinhas para crianças. Tanto a história moldura quanto muitas das histórias de Sherazade possuem temática bem adulta: erotismo, violência, terror, suspense... 

Sherazade e o Rei Shariar. Pintor: Ferdinand Keller


   Esse livro magnífico foi traduzido para o árabe como As Mil e Uma Noites; um capricho dos árabes, supersticiosos com números inteiros. 
   A história, obviamente, sofreu outras influências das civilizações que se propuseram a preservá-la para as próximas gerações. 
  Os muçulmanos, incluíram louvores a Alá, realizando também  pequenas mudanças em algumas histórias.
  Com o passar dos séculos, apenas um pouco mais de um quarto do livro sobreviveu aos dias de hoje, somente 281 noites. Tais manuscritos, escritos em sírio, foram denominados Ramo Sírio.
   Diversos escritores egípcios trataram de completar as noites com novos contos, agora egípcios, novas influências... esse manuscritos, menos fiéis aos originais, foram denominados Ramo Egípcio.
  Mas em 1706, um tradutor francês, Antoine Galland, fascinado por histórias árabes, começa a fazer uma tradução das mil e uma noites para um idioma ocidental, o francês. Ele adapta o Ramo Sírio para atingir um público maior: censura a violência, a discriminação etnica, e cenas sexuais do texto. Ele também completa as mil e uma noites, mas com outras histórias árabes, como Alladim e a Ali Babá.
Sherazade nunca contou a história de Alladin. Ilustração: Albert Letchford.
  Galland cria nada menos do que um best seller! Inspirando filmes, dese-
nhos anima-dos, jogos e outros livros, pelos séculos que se seguiram, até os tempos atuais.
 Graças ao registro de Annadím Alwarraq, nós sabemos que, embora a trama central foi bem preservada pelas eras, alguns detalhes mudaram muito: Originalmente, Sherazade não era filha de um ministro, como está escrito no Ramo Sírio e Egípcio, mas uma espécie de princesa, ou nobre; também Dinazade não era irmã de Sherazade e sim, uma aia do rei. Também sabemos que as histórias mais famosas: de Simbad, Ali Babá e Alladim, foram incluídas por Antoine Galland, no intuito de completar as mil e uma noites.
    É triste que quase três quartos da história original tenha se perdido. Além da noite 281, não temos como saber que histórias Sherazade contou para o rei. E o pior: O conto do rei Qamaruzzamane e seus filhos Amjad e Ascad ficou interrompido no meio! E nunca saberemos o final original. 
  Mas temos que ficar felizes que uma parte dessa história sobreviveu por mais de 1500 anos, graças ao esforço de diversas civilizações que buscaram preservá-la.

 

4 comentários:

  1. Muito interessante Fernando! E suas próprias histórias, onde estão? Abraços.

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    1. Obrigado, Raquel! Para ler as minhas histórias, além do livro Tenebra ao lado, você pode clicar na tag "contos" (embaixo, à direta em "Por tema") vai encontrar muitas histórias minhas que eu publiquei aqui. Recomendo a história "Não Matem o Passalinho" se você não for muito hardcore... é uma história bem fofa. Eu vou gostar de saber o que você achou das minhas histórias. Você também pode achar livros antigos meus, em pdf, para ler no meu site: http://fernandovrech.wixsite.com/siteoficial

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  2. legal. estou lendo esse livro, a tradução do Mamede mustafa jarouche.

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    1. Também tenho esse livro! É muito bom e bastante técnico (e bem honesto na tradução, mesmo as partes polêmicas).

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