Safos, de Lesbos... Era Mesmo uma "Safada"?

  Safos, foi uma das maiores poetisas da história da humanidade e é uma pena que tenham restado apenas fragmentos do seu trabalho. Um dos motivos para destruírem suas poesias foi a ideia de que ela seria uma mulher promíscua, que mantinha relações com várias pessoas, homens e mulheres, inclusive com suas próprias alunas. De fato, Safos e a própria ilha onde ela vivia, Lesbos, passou a ser considerada um símbolo, um ícone, para mulheres homossexuais; que, até mesmo, preferem ser denominadas "lésbicas."
  E se eu dissesse que não há nada que confirme que Safos, de Lesbos, era uma "safada"? E dissesse que, dentre as poucas coisas que sabemos sobre ela, está a sua filha, Cléis?
  O que motivou essa minha pesquisa foi justamente a "certeza absoluta" que certas culturas atuais, principalmente a moralista cultura religiosa ortodoxa, bem como a deslumbrada cultura LGTB, de que Safos era uma mulher promíscua, que cultuava o amor livre, independente do compromisso ou do sexo.
  Por um lado, religiosos fervorosos em combater o que consideram imoralidade, e, do outro lado, uma cultura LGTB, nova e ansiosa para encontrar exemplos, personagens com os quais se identifiquem... enfim, uma cultura ansiosa para criar raízes. Misture tudo isso e leve ao forno e você terá um grande bolo de mito e equívoco.

Quem realmente foi Safos, de Lesbos?

  O que sabemos sobre essa poetisa é tão pouco que dá para contar no dedo de uma mão: 1. Ela seria de uma família aristocrata de grande participação política. 2. Ela recebeu educação refinada o que lhe capacitou para se tornar uma grande poetisa. 3 Quando foi exilada na Sicília, por conta da posição aristocrática de sua família, Safos se envolveu com certo homem e teve sua filha Cléis. 4. Quando voltou do exílio, após cinco anos, Safos instituiu em Lesbos uma escola para moças, onde ela ensinava poesia, dança e outras matérias de cunho artístico e intelectual. 5. Os fragmentos das poesias de Safos que restaram indicam a temática de um forte sentimento, direcionado tanto a mulheres quanto, algumas vezes, a homens.
  Fora essas informações, há inúmeras lendas, como o nome do marido dela (pai de Cléis), Kerkylas (derivado da palavra grega Kérkos, que significa "pênis"); que ela teria se envolvido romanticamente com Alceu, um famoso poeta de Lesbos, contemporâneo a ela; e que ela teria se suicidado devido a um amor não correspondido por um marinheiro chamado Faón, e assim por diante. Sendo eu tanto um historiador quanto um folclorista, procuro separar lenda de informação histórica. Vamos nos ater apenas ao que possui qualidade o bastante para ser considerado informação, que são os cinco pontos alistados no parágrafo anterior.
  A partir desse pouco que sabemos, podemos elaborar questões pertinentes e usar o raciocínio para respondê-las:

   Poesia lírica expressando fortes sentimentos a outras mulheres é o bastante para definir a sexualidade da poetisa?
  Não, esta seria a resposta mais sincera. Dois pontos importantes são levantados ao tentarmos responder essa pergunta: o eu lírico e o amor platônico.
  O eu lírico é um personagem criado pelo poeta que narra sua poesia em primeira pessoa. Um poeta pode criar uma poesia usando um eu lírico do sexo oposto; sem que isso tenha alguma coisa a ver com o seu "eu" real, sua própria identidade. Um exemplo atual de poeta que usa um eu lírico é Chico Buarque, em várias músicas como "Teresinha" (Ouça aqui a música).
  Uma vez que grande parte da poesia da época era criada por homens, Safos poderia usar esse recurso do eu lírico, por ter influências literárias de poetas masculinos. É possível que seus professores de poesia tenham sido homens. Houve inclusive, um importante poeta contemporâneo a ela e que também vivia em Lesbos, chamado Alceu. Portanto, por influência literária, Safos poderia ter optado pelo uso de um eu lírico masculino.
  Outra possibilidade é que o sentimento expresso nos poemas de Safos, provavelmente por suas alunas, eram um forte sentimento platônico, uma vez que nada nos fragmentos de seu trabalho insinua uma relação carnal entre elas.
  Platão afirmava que sentia por seus alunos uma forte ligação, um grande amor, que atribuiu como estando desprovido de erotismo. Assim, Platão desenvolve o conceito de amor platônico (que é diferente do conceito atual de amor platônico, que seria um amor romântico reprimido).
  Safos, obviamente, nutria fortes sentimentos por suas alunas. Como um mestre sentia pelos seus pupilos.


  Uma lésbica, na época, conseguiria manter uma escola para mulheres?
   Jogando agora uma luz provinda da área da economia. Será que existiam, assim, sem mais nem menos, escolas lésbicas na Grécia? Seria viável do ponto de vista da oferta e da procura?
  É sabido que o sexo entre homens era bastante aceito na antiga cultura grega. Mas o mesmo não é tão aplicável com respeito a sexo entre mulheres. Dentro da cultura grega, era preferível que as mulheres exercessem sua sexualidade por meio do matrimônio. Um matrimônio formal, na Grécia Antiga, possuía finalidades além das sexuais, como o amparo econômico, proteção e herança.
  As poesias de Safos não eram segredo, eram notáveis pela ilha. Se tais poesias fossem interpretadas, na época, como sendo resultado de amor erótico entre Safos e suas alunas, será que alguma família iria querer matricular suas filhas nessa escola? Há historiadores que afirmam que moças de toda a Grécia iam para Lesbos aprender com Safos. É difícil, considerando a cultura da época, que famílias de toda a Grécia mandassem suas filhas para lá se Safos tivesse a reputação de se relacionar sexualmente com suas alunas. Não era bem a oferta educacional que as famílias procuravam para a suas filhas, não acham?

 Será que atribuímos às poesias de Safos conteúdo lésbico por mera sugestão?
  Uma leitura superficial do pouco que restou do trabalho de Safos pode facilmente ser distorcido se já estivermos dispostos a acreditar que são conteúdo homoerótico. E eu diria mais: a própria tradução de suas obras, vindas de um difícil grego arcaico, podem facilmente ser reinterpretadas pelos tradutores, se estes já estivessem dispostos a produzir conteúdo homoerótico; principalmente se estiverem tentado comprovar uma "imoralidade suja", com intuito de inferiorizar essa grande poetisa. Ou, mais atualmente, com o intuito de levantar bandeiras políticas LGTB, algo icônico, como um "Pablo Vitar" da Grécia Antiga... Lembre-se que são apenas fragmentos fora de seu contexto.
  Um bom exemplo disso é quando lemos apenas um fragmento solto do trabalho dela como por exemplo, este: 

“Rasgai, rasgai os vestidos, rasgai vossos seios! Ó donzelas!" 

  Quando lemos esse verso, já predispostos a ler literatura homoerótica, ressaltando novamente uma tradução já disposta a produzir conteúdo erótico, ficamos com a ideia de uma orgia homoerótica digna de redtube. Mas vamos ler uma parte mais completa desses versos, lembrando que está fragmentado.


“Eu não quero para ti, ó Cléis,
Nem sei onde encontrar, uma fitinha
De cores alegres; mas [ ] os mitilenos”
(11).
“Eras pra mim uma criança
Pequena e sem encantos”
[ ]
“Adormecendo no seio de uma terna amiga”.
(109). 
(um verso, obviamente, dedicado à sua filha.)

“igual á criança, na direção da mãe,
como se tivesses asas, voei para ti”
(24).
“Sinto que já não me queres, Átis,
e para os [braços de Andrômeda] alças vôo”.
(75).
“E há muito tempo eu já te amava,
ó Átis”
(111). 
(nesse fragmento, Safos se refere a Átis, uma de suas pupilas. Um sentimento que pode ter muitas interpretações)

“Rasgai, rasgai os vestidos, rasgai vossos seios,
Ó donzelas ”(79).

  Ao lermos o poema um pouco mais completo, vemos que Safos se referia a um sentimento doloroso, de perda: o amor por sua filha quando criança que, agora crescida, é um amor transformado que gera saudades. 
  Não temos todos os versos do poema, mas, por indução, Safos parece ter associado suas pupilas com sua filha, quando criança. Átis agora "não quer mais a Safos", ou seja, cresceu intelectualmente, aprendeu e, talvez, esteja indo embora de sua escola. Mas Safos "há muito tempo" ama suas pupilas e agora está triste em ter que deixá-las. 
  Começar seu poema falando do amor materno, torna difícil interpretá-la como criando um conteúdo homoerótico. "Rasgai seus vestidos", pode ser traduzido como "rasgai suas vestes". Rasgar as vestes era um costume antigo, mundialmente difundido, de demonstrar pesar. Safos solicita que suas outras alunas demonstrem pesar quando uma aluna vai embora. 'Rasgar os seios' seria uma hipérbole (uma metáfora de exagero) para denotar a enorme dor que é tema da poesia.
  Mas esse poema dela também poderia ser interpretado como homoerótico? Sim, por que não? Safos fala de um sentimento forte por suas alunas, que poderia ser erótico. Mas é apenas uma interpretação. Tanto poderia ser erótico quanto poderia ser platônico, não há como saber. Portanto, não como afirmar que Safos era lésbica. 
  Mas essa ideia, como já vimos, parece incompatível com a cultura da época, Safos não seria tão influente se se apaixonasse eroticamente por suas alunas; as família não desejariam matricular suas filhas em sua escola; que era famosa.


Uma sexualização muito posterior da poetisa.

  Portanto, é menos provável que Safos fosse uma mulher promíscua, uma "hippie" paz e amor, do amor livre, e tals. Ele tinha uma filha, poderia até ser uma mulher casada. 
  A ideia de Safos como uma mulher imoral foi popularizada em meados do século 18! Mais de mil anos após a existência dela! Suas poesias foram interpretadas de forma erótica pela igreja e Safos passou as ser usada como mau exemplo de conduta. Aí temos, inclusive, a origem da palavra "safada" que remete ao nome Safos. Posteriormente, suas obras foram sendo destruídas até restarem apenas fragmentos. 

 
A homoerotização de Safos começou mais de 1000 após após a morte da poetisa. Com nesse quadro, muito comumente usado para denotar a suposta homossexulidade da poetisa. Do pintor Simeon Solomon, século 19.

  Totalmente opositor da igreja, a cultura LGTB, por sua vez, tinha agora um ícone homossexual perfeito de uma grande mulher que foi, supostamente, vítima de homofobia, e que fora diminuída e caluniada pela igreja. 
  Porém, uma vez que a escola de Safos era para educar moças, é muito mais provável e verossímil que Safos fosse uma mulher de família. Sabemos que era mãe, que era membro da aristocracia, e podemos ler alguns poucos fragmentos mal traduzidos de suas poesias. Pouco demais para especularmos sua sexualidade.
  Mas atualmente, Safos e ate é mesmo própria a ilha de Lesbos, são tidas como um símbolos LGTB. Nada contra. Mas realmente me incomoda que a humanidade ainda fundamente sua cultura em alegações tão subjetivas, e tão distantes do método científico e historiográfico. 


Leitura complementar.
O documento abaixo, serviu como uma das fontes de pesquisa, e pode complementar a leitura desse artigo.




2 comentários:

  1. Na realidade alguns meios culturais ou informativos
    usam a história, a ciência, a sociologia e até mesmo todos os
    ismos... como melhor lhe convêm naquele momento; é assim que
    convencem as pessoas na maior cara de pau... e o mundo... todo aceita.

    Prazer em conhecer seu blogue.
    Boa entrada de ano.
    janicce.

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    1. Eu sempre digo que a mentira vem principalmente de quem trabalha com a "verdade": professores, cientistas, jornalistas... Eles sabem a confiança que o povo deposita em um "diprominha", então é óbvio que vão abusar disso.
      O mentiroso só existe porque sabem que acreditarão nele, então as piores mentiras não vêm da vizinha fofoqueira, vem dos profissionais.
      Obrigado pela visita e boa virada

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