Kabuki - 1 (Parte1)

   Este conto faria parte de um livro onde professores se encontram para contar diversas histórias estranhas que teriam presenciado em suas vidas. Nesse livro, o professor Kalebh Akshan também conta sobre suas expedições da juventude.
  Mas alguns contos acabam saindo da temática sombria que eu quero para o livro. Toda vez que eu escrever um conto e decidir não incluí-lo no livro, eu publicarei aqui para vocês lerem, ok?
  Esse conto era para ser mais sombrio mas, como acontece como as melhores histórias, saiu do meu controle e se tornou uma ficção científica. Uma excelente história do gênero Mecha (leia mais sobre gêneros literários aqui).
  Ele é um pouco grande, então vou publicá-lo em duas ou três partes. Quero ler comentários sobre a história, blz?

Apreciem...





 Kabuki-1

  Katsuo sempre teve fascinação por robótica. Mas seu conhecimento limitado, adquirido na internet e em suas experiências caseiras com o Raiden, um robozinho simples que ele vivia construindo e reconstruindo, o levara, no máximo, a ser officeboy na corporação de robótica japonesa Oni.
  Mas Katsuo mal tinha tempo para espiar os projetos da empresa. Passava pelo corredor dos escritórios dezenas de vezes por dia, trazendo papéis, levando papéis e servindo o cafezinho aos nerds "girayas" da corporação.
  Mas ele almejava mais, estava juntando dinheiro para se formar em robótica. Ele também queria ser "giraya."
  O último sábado do mês passado foi feriado aqui no Japão. Katsuo foi escalado para trabalhar mas quase não tinha trabalho. Terminou cedo e foi espiar o projeto mais recente da empresa, o projeto Kabuki.
  Katsuo passou de mansinho pelas janelas do corredor que dava acesso à oficina da empresa, uma grande sala, com máquinas modernas, braços robóticos parafusando aqui e ali, robôs fazendo robôs. De esfregão na mão, Katsuo não daria margem para ser chamado de bisbilhoteiro, estava "trabalhando".
  Ele se lembrava de ter espiado uma papelada que levou de um escritório para o outro, certo dia. O projeto Kabuki tinha o objetivo de criar um animatrônico inteligente para filmes de monstro; um que fosse multiuso e reutilizável, que pudesse atuar em vários papéis; desde o implacável maior inimigo do Godzila até o amável Robô-Gigante. Por meio de partes recolocáveis, o robô podia assumir diversas aparências, e novas aparências podiam ser criadas a qualquer hora. Dois metros e meio de puro aço parrudo. Três engenheiros empreitavam os retoques finais na máquina, que jazia sentada na mesa de trabalho, como uma criança de castigo. Ainda não havia uma "alma de zeros e uns" dando vida ao gigante, seu software estava sendo programado em outra sala da empresa, pelos nerds que Katsuo viciara com seu café.
  Katsuo olhava atentamente, tentando se contaminar com algum resquício da genialidade dos engenheiros para melhorar o Raiden que, até o momento, só sabia ir pra frente e parar ante a obstáculos.
  Mas para suportar os terabytes do programa que estava sendo desenvolvido, para realizar os milhões de cálculos, para processar a inúmeras informações áudio-visuais e para passar pelas infindáveis estruturas de condição e escolha de casos do programa, em tempo útil, o robô precisava de um cérebro. Não o processador de celular que Katsuo adaptou em seu robô Raiden, mas algo novo.
  Para o projeto Kabuki a doutora Miyoko criou o Gel Miri-bótico: dezenas de milhares de nano-robôs, cada um possuindo seu núcleo processador, e revestidos por uma proteção polimérica, nadando em uma solução eletrólita, programados para funcionar em multi-core, em enxame. O próprio enxame era programado para decidir usar apenas dois deles, ou um terço, ou todos em conjunto, cada mini-tarefa de processamento de dados sendo dividida entre eles; e cada nano-robô se comunicando com os circuitos do Kabuki em uma frequência individual, por meio do eletrólito em que está disperso. Um avanço assustador e um segredo da empresa Oni que o pobre Katsuo nem sonhava.
  Mas Katsuo sonhava... e babava e chorava de emoção ao ver o primeiro Kabuki da empresa Oni mover o braço, usando um software e hardware comuns, só para testes. Para Katsuo era lindo como ver um bebê nascendo!
  Então os engenheiros olham em direção à janela do corredor e percebem Katsuo grudado no vidro. Katsuo gela e começa a esfregar o chão freneticamente, mostrando "serviço."
  - Katsuo, precisamos de mais um par mãos orgânicas aqui. Essas máquinas burras só sabem apertar parafusos. Venha nos ajudar.
  Katsuo entra na oficina, em êxtase contido, com as mãos trêmulas e os olhos arregalados de emoção.
  - Haha! Calma Katsuo. Todos sabemos de suas ambições, vem aprender um pouquinho. Veja a articulação dos dedos... percebe o quanto se baseia nas articulações humanas? Usamos biomimética em tudo que pudemos com o Kabuki, e nem é o modelo comercial ainda, é um protótipo. Percebe o segredo da boa robótica Katsuo?
   - Biomimética! - responde Katusuo, enfaticamente.
  Os engenheiros testam as articulações de Katsuo e realizam as últimas calibragens no Kabuki. Katsuo recebeu a tarefa de lubrificar a articulação do robô, trabalho que realizou com maestria elogiada pelos engenheiros.
  Um dos engenheiros aciona um comando e o Kabuki se levanta, para a maravilha total de Katsuo. O gigante olha para Katsuo e estende-lhe a mão.
  - Pelo visto, o Kabuki quer agradecer o Katsuo pelos reparos... haha.
  - Vamos Katsuo!
  - Ele foi programado com comportamento básico humano.
  Katsuo, contendo a alegria, cumprimenta o monstro de aço. Aquele foi, sem dúvida, o melhor dia da vida de Katsuo.
  Na segunda, ele aparecia contente, levando seus papéis pra cima e para baixo. Ele agora podia dizer que contribuiu para a construção de um robô de verdade. Em sua folga ele deu braços preênseis para o Raiden, mas vai demorar para o robozinho aprender a apertar a mão.
  Indo para os escritórios de programação, uma discussão acalorada chamou a atenção de Katsuo. Akira não era o chefe do setor de programação, mas certamente era o mais talentoso. A empresa Oni tinha investido muito em programação, contratando programadores demais; teria chegado a hora de uma reestruturação no quadro de funcionários. Embora Akira fosse muito talentoso, era indisciplinado, faltava no trabalho e tinha "certos dias", sabe como é; não estando empenhado em oferecer seu precioso talento de forma integral, a empresa tomou a decisão de valorizar os diligentes, mesmo que menos talentosos.
  Akira, que havia criado a expectativa de que seu grande talento iria tornar a empresa dependente dele, não pensava em ser mandado embora. O choque foi grande. Gritaria, Cds atirados ao ar. Repentinamente a porta da sala de Akira é aberta com violência. Akira, bicudo, sai batendo o pé, segurando uma caixa com os seus pertences.
  Dois meses se passaram e a rotina da empresa continuava ofegante. Katsuo com seus papéis e suas saídas para pagar contas e comprar itens banais pedidos pelos programadores.
  Já, na oficina, as coisas mudaram muito nesses dois meses. Os experimentos com o gel miri-bótico, no Kabuki número 1, foram promissores. Os engenheiros abandonaram o protótipo no armazém da empresa e já estavam nos retoques finais da versão final. Construído para atender a demanda cinematográfica por robôs maiores, Fumisato, o novo robô, media gigantescos três metros e meio! Sua "carroceria", cheia de detalhes verde-metálicos, em contraste com o vermelho fosco do Kabuki, aposentado no armazém. A cabeça do gigante era um capacete com olhos amarelos ornada com um par de asas de metal, dispostas nas "têmporas", elas podiam ser dispostas para trás ou podiam ser abertas, como um cão erguendo as orelhas; o radar do Fumisato também ficava escondido nessa parte.
  Não deixariam Katsuo mexer nesse robô; isso não impediu Katsuo de tomar um lugar discreto, no corredor, no momento de Fumisato ser ligado. Estavam assistindo, naquele momento, o diretor da empresa, a equipe de programadores e a doutora Miyoko. Não haviam repórteres; o evento era fechado aos grandes nomes da empresa. A publicidade seria feita apenas quando tudo estivesse pronto; para evitar imitações do produto.
  Enquanto todos assistiam, ansiosos, um tubo injetava o gel miri-bótico na cabeça do gigante. O software foi baixado no robô em pouco mais de um minuto. A programação do robô começou a rodar, seus olhos amarelos acendiam gloriosos, maravilhando a todos. A programação do robô, escrita para simular o comportamento humano, dava ao robô a capacidade de interagir com o ambiente e com as pessoas em volta 24 horas por dia. O robô-ator sabia quando a situação era de gravação de uma cena e quando era interação real, sabia diferenciar a realidade da ficção. O robô reagia ao ambiente selecionando entre diversas possibilidade cabíveis, proceduralmente, entre as mais apropriadas para cada situação. O robô aprendia as atitudes que resultavam em sucesso social e tendia para assumir um comportamento específico, um ator precisa ter carisma. Enfim, Fumisato era programado para aprender que atitudes seus fãs gostavam mais. Seus criadores não sabiam que personalidade Fumisato desenvolveria com o passar do tempo: palhação, metido, amável... claro que o programa criava limitações para evitar que Fumisato se tornasse insuportável de alguma forma.
  Ao ser ligado, o gigante de olhos acesos se levanta. Alguns segundos se passam, Fumisato faz suspense... então levanta os braços e clama, com sua voz eletrônica:
   - Me sinto fantástico!
  Todos comemoram a primeira de muitas frases de Fumisato, os diretores sonhavam com a grana que ganhariam, a doutora chorava de emoção. Katsuo, gaiato naquela festa, meio escondido, arregalava seus pequenos olhos, atrás daqueles óculos e abria pasmo a boca, misturando com um sorriso de admiração.
  Fumisato olha para os lados, olha para um dos engenheiros que estendia-lhe a mão para cumprimentá-lo (é certo que japoneses preferem a reverência com a cabeça, mas com o robô os engenheiros queriam tocá-lo, preferiam o cumprimento de mão).
Fumisato desce a mão no braço do engenheiro e todos ouviram o barulho do osso se quebrando.
  - Meus fãs gostam de sangue, com certeza! Olha o que eu posso fazer! - O robô de quase 4 metros metros pega outro engenheiro pela cabeça.
  - Estou certo que sai bem mais sangue se eu arranco a cabeça dele. Filmem!
  O outro engenheiro aperta freneticamente o comando de desligamento do robô. Após algumas tentativas com o comando de desligamento, os olhos do robô se apagam, deixando pendurado pelo pescoço o engenheiro, já com as calças molhadas.
  A plateia privilegiada, agora está estarrecida; com certeza o problema era de programação. As autoridades da empresa olham para os programadores, mas eles são incapazes de explicar o ocorrido, arguindo que as simulações do software o mostravam impecável.
  O engenheiro que quebrou o braço recebeu atendimento e o outro engenheiro foi solto quando afrouxaram as articulações da mão de Fumisato.
  Os programadores foram mandados direto para suas respectvas salas para revisar o software.
  - Graças a Deus que não tinha imprensa! - exclamou o diretor, num arrepio.
  Os outros funcionários não assistiram ao show de Fumisato mas logo descobriram o que aconteceu. Houve alguns pedidos de demissão.
  No mesmo dia o diretor decidiu que formatar Fumisato era a coisa segura a se fazer. Os dois engenheiros que ainda ficaram na empresa moveram-se para a oficina onde estava o Fumisato desligado. Para não ter que ligar o robô ensandecido, eles iriam, simplesmente, extrair o gel miri-bótico dele.
  Katsuo não aguentou de curiosidade e dirigiu-se para a oficina espiar novamente.
  Antes mesmo que Katsuo chegasse, os engenheiros chegaram perto de Fumisato que, sem comando, acende seus olhos amarelos. Olha para os engenheiro apavorados que já fugiam e diz:
   - Mas sem processadores eu não posso fazer sucesso!
  Os engenheiros se escondem como podem até que a saída esteja longe do alcance da máquina assassina.
  Katsuo aparece pela janela, confuso e os engenheiros cochicham para ele:
  - Katsuo, corre daqui! - O robô abre as asas metálicas, captando o sussurro dos engenheiros.
  - Entendam! Eu calculei baseado nos últimos filmes de sucesso. Vou ficar muito mais famoso se eu ficar mau. E empresa Oni vai ter muitos holofotes, eu garanto! - Clamava Fumisato.
  Os engenheiros faziam agora apenas gestos, para Katsuo se salvar.
  Fumisato aparece ante os engenheiros.
  - Haha! Estão aí. Fãs gostam de atores artistas, sabiam? Vou fazer arte moderna com vocês.
  Katsuo se assustou a saiu correndo, atrás deles as janelas que davam para a oficina foram cobertas de sangue, que explicavam muito bem os gritos ouvidos em paralelo.
  Pelos corredores onde ele sempre passava com papéis, agora ele gritava em alarme:
  - Fumissaaaaatooooo!!!
  Todos abandonaram o prédio, a equipe de programadores foram os primeiros, dai os funcionários e logo atrás os diretores. Ninguém pensou racionalmente, na hora. Não adiantaria fugir. Fumisato era totalmente autômato, com uma bateria quase sem fim; carregada com íons de potássio. Poderia facilmente sair das dependências da empresa. Mas fugindo, ao menos, eles se misturariam com a população, diminuindo a chance de serem alvos de Fumisato.
  Mas Fumisato não saiu imediatamente. Ele se dirigiu para a sala de partes recolocáveis. Ele era uma diva e queria mudar sua aparência. Com uma máscara de ushi-oni, um demônio japonês, capacete de samurai, uma capa e garras metálicas, ele estava pronto para ser mau e conquistar seus fãs... e quem se assustasse, tanto melhor... seria somente matéria prima para a sua... arte moderna.
  Katsuo já estava em casa, mas não teria fugido antes de pegar uma cópia do software de Fumisato. Ele não ficaria parado, era um otaku medroso, mas tinha espírito nobre. O Raiden o recebia feliz como um cachorrinho recebe o dono. Com pés giratórios, agora ele já podia virar para o lado que quisesse e mapear o ambiente com alguma precisão. No topo da cabeça do robozinho, Katsuo colocou duas pequenas hastes, como anteninhas, entre as quais passava uma carga elétrica, um lindo raiozinho azul!
  Na companhia fiel de seu próprio robô, Katsuo, mesmo com conhecimento limitado, tentava resolver o problema de programação. Depois de horas rachando a cabeça, Katsuo teve uma daquelas ideias de iniciante; sabe? Simples e efetivas, que nerds "girayas", considerando todas as complexas possibilidades de solucionar o problema, talvez demorassem muito mais para começarem a ter essas ideias simples. Ele decidiu deletar toda a rotina de programação referente a atuação, a cinema e tecnicas dramáticas. O que restou era apenas uma emulação do comportamento básico humano. Fazendo as adaptações necessárias no programa, deletando solicitações de certas variáveis e de certas subrotinas, o software estava pronto. Rodou bem no simulador. Ainda era baseada na especulação de que o defeito no software era relacionado ao cinema; era óbvio para Katsuo, mas ainda era uma teoria. E o que ele poderia fazer com o software?
  O plantão jornalístico da TV mostrava vultos gigantescos nas áreas rurais. Fumisato recebeu holofotes como garantira. Katsuo, notando que a oficina da empresa estava livre, exclamou:
  - O protótipo!
  Katsuo dirigiu até a oficina e, após ser obrigado a contemplar a arte moderna nauseabunda de Fumisato, foi ao armazém procurar Kabuki, o primeiro robô.
  Kabuki estava jogado no chão, sentado na quina do armazém, como um brinquedo gigante cujo dono enjoara. Katsuo pegou Kabuki com uma empilhadeira e o levou até a mesa da oficina. Injetou o gel miri-bótico em sua cabeça (um pouquinho mais do que o especificado, cortesia de Katsuo), baixou o novo software em Kabuki e.. voilá? Ainda não, Katsuo programou um timer no comando de ligamento e correu para o corredor. A última janela ainda estava transparente apesar do sangue seco. Se Katsuo tivesse criado só mais um robô doido, correria como um louco e ninguém saberia quem multiplicou o problema. 




Fiquem atentos, logo publicarei a parte 2! 
A parte dois (final) foi publicada: Parte Final

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